Onde limite é a virgula e não o ponto.


Uma História Especial

29/04/2016 15:28

Uma História Especial

 

Pedrinho não se deu conta da hora... E a muito jazia à hora de ir embora...

Muito embora, o Sol já tivesse avisado que iria se por:  

- É melhor encontrar seu caminho Pedrinho. A Cuca acorda quando dou corda no relógio. E saí pela floresta quando me ponho à dormir.

Pedro continuava a se afastar do sítio do pica-pau amarelo. Já não sabia nem ao certo por onde tinha vindo, nem se demoraria muito à chegar.

Passou pela casa do Jeca e avistou o cajueiro como sua prima havia lhe dito, mas não achava o doutor.

- E agora? Pensou.

- Não encontro meu rumo. Será que Narizinho narrou o destino certo? (chamavam sua prima Lúcia de Narizinho, por conta do nariz arrebitado). Ela havia sido bem precisa:

- Pedro, vai achar seu pé esquerdo, depois do pé de caju. Lá atrás da casa do Jeca Tatu. Vá direto pela floresta até o rio da verdade no bosque verde. O dito cujo, Dr. Caramujo mora numa concha vizinha a da casa de Oxum. Vá lá que ele dará um jeito nessa sua perneta!

O Dr. Caramujo entendia de tudo quanto é medicina. Tinha pílulas para todo tipo de enfermidade; ‘piriri’, unha encravada e até olho gordo. Tia Anastácia, certa vez, ficara meses sem sorrir. A muito não se via aquela sua alegria sair voando pela cozinha. Até o famoso bolinho de chuva saia meio aguado... Dona Benta realizando alguma enfermidade, chamou o Dr. Caramujo, que resolveu tudo num minuto. Disse ele:

- Isso é falta de feijão!

Deu então, um grão de feijão preto para cada peão na casa e mandou que entregassem para tia.

Falou que eram feijões mágicos, que só funcionariam se dissessem palavras mágicas ao oferecê-los. Foi mais ou menos assim:

- Gratidão tia Anastácia, por preparar mais um saboroso feijão!

Prescreveu também, para todos almoçarem juntos, naquele e em todos os outros dias.

E não é que a medicina do Dr. Caramujo foi porreta? Naquela manhã ao preparar o almoço, a tia sorriu e o riso dela voltou a bater asas por todos os cantos da casa. Foi à melhor feijoada que comeram em todos os tempos - dantes e ‘despois’. E como disse o Tio Barnabé: - O sorriso da nega Nastácia ‘avoa’ ‘inté’ hoje!

... Ops! A areia escoou pela ampulheta do tempo, enquanto contei a história da Tia Anastácia.

Já era tarde da noite na floresta e Pedro continuava perdido. Havia chegado ao riacho, mas não sabia ao certo, se tinha que atravessar, subir ou descer. Seus braços doíam e as muletas queimavam-lhe os sovacos. Cansado de andar, sentou-se desolado em uma pedra na beira do riacho.

- Poxa, todos no sítio devem estar preocupados comigo...

... Não contei à vocês, o motivo dessa desventura toda. Foi muito tempo atrás... Na verdade, nem tanto assim, foi a dez anos. Aconteceu quando Pedrinho ainda nem tinha esse nome. Vinha do céu, enovelado a Sra. Cegonha Cegueta, em jornada divina até a barriga da sua mãe. Estava sendo carregado numa cestinha feita de algodão doce de nuvem. Apesar de todo cuidado, a Sra. Cegonha não enxergava muito bem e acabou batendo o cesto em alguma árvore na floresta. Para aqueles que acreditam em acidentes, Pedrinho acabou perdendo a perna esquerda. Só restou-lhe o coto.

Ao nascer e desde sempre então ficou perneta. Sentia-se triste ao ver as outras crianças brincar de pega-pega ou pica-esconde. E ainda diziam que se tornara especial. Não entendia... Como podia ser ele especial, se não podia brincar igual aos outros?

Pedrinho choramingava sua vida, abundado a pedra. Cigarras, sapos e grilos começaram uma sinfonia noturna, quando ele escutou um barulho na floresta. Galhos quebravam e retorciam. Sentiu um cheiro de tabaco queimando no ar. Um vento gelado de fantasma, lhe cortou a espinha. O rosto corou, e o coração disparou! Será a Cuca?

Com o susto, levantou de solavanco e acabou caindo no riacho! ‘Splash!' As muletas se foram. Pedrinho estranhou; ao invés de descerem rio abaixo, as muletas bizarramente flutuaram acima... Nossa! Como pode isso? Que arte é essa?

Bem de perto, como se estivessem cochichando aos seus ouvidos escutou:

- Pular com duas pernas é fácil! Quero ver pular ‘pererê’ numa perna só! Quem pular e não cair é o maior!

Acima dele pululando na pedra onde estava antes, Pedro viu pela primeira vez o diabinho... E ele cantava e ria:

 

Vai pêrêrê, Vai pêrêrê, Vai pêrêrê pêrêrê pêrêrê!

Vai pêrêrê, Vai pêrêrê, Vai pêrêrê pêrêrê pêrêrê!

DERRUBA!... Kkk!

 

Pê pê rê rê rê rê pê pê!

Pê pê pê rê pê rê rê rê!... Kkk!

 

O Saci era um menino mais ou menos da idade de Pedro. Assim como ele, era perneta. Tinha uma carapuça vermelha e um cachimbo que ficava pitando o tempo todo, enquanto pulava e reinava.

- Que chororô é esse menino? Parece que tomou sorvete quente. Vem pular carnaval aqui com a gente! Pular juntinho é sempre melhor!

- Não posso, perdi minha perna, tenho que encontrar o Dr. Caramujo. Ele vai resolver meu problema.

- Kkkk. Ninguém irá resolver problemas por você. Na verdade manquitolo, seu problema é a Cuca. Kkkk!

Tão rápido quanto chegou, o Saci partiu. Pedro estava furioso. Nadou até a margem do riacho. Levantou-se, tirou e torceu as roupas encharcadas. Tomou coragem e assim igual a Saci, de perna solteira, pulou à subir o rio atrás das suas muletas. Tremia como vara verde, mas dessa vez não era de medo, sentia muito frio naquelas vestes úmidas.

- O que será que será que o Saci quis dizer? Será que a Cuca virá me pegar?

Lá no meio da floresta, já bem distante, Pedrinho escutou a voz do Saci Pererê ecoar novamente:

- Kkkk. Já pegou manquitolo. Vosmecê tá pego! kkkk.

No céu, a lua brilhava barriguda de leite. Como sempre, cercada por seus incontáveis filhos lantejoulas, que respingavam brancos no céu negro. Na terra, o rio rivalizou em beleza, refletia todo alumiado por vaga-lumes. Isso era um bom presságio, pensou Pedrinho. Sua jornada estava sendo bem iluminada, pelo Céu e na Terra. Já pensou quem vaga pelo breu?

Mais acima no arroio, Pedrinho avistou um enorme sapo boi. Muito mais boi que sapo de tão gorducho. A língua afiada estalava no ar igual chicote atrás das luzinhas pisca-piscas. Sua barriga brilhava de tantos vaga-lumes que havia comido. Foi lá perguntar:

- Boa noite Sr. Sapo? Por favor, donde fica a casa do Dr. Caramujo?

- Croac-croac! Como sabe que esse sapo sabido sabe versar?

- Não sabia, mas...

- Croac-croac! Saiba que sabe muitas coisas que pensa não saber menino sabido. Serei sua lucerna.

Então, o boi... quer dizer, o sapo, foi na frente de Pedro indicando o caminho. Os dois saltimbancos, saltitando.

Subiram pela beira, cada vez mais rio acima. Apesar de gordo, o Sr. Sapo era bem ágil. Pedro teve que se esforçar bastante para acompanhá-lo.

A certa altura, o riacho bifurcou. Sr. Sapo parou ali e estalou o chicote. Pedrinho prestou atenção. Será que lhe apontava a direção? Na verdade, o Sr. Sapo deu na bunda de uma muriçoca. Socou ela para dentro sem cerimônia. O inseto (claro a contragosto) foi obrigado a fazer companhia para os vaga-lumes.

- Para onde irei agora Sr. Sapo?

- Croac-croac! Tanto faz, tanto fez... Para quem não sabe o que houve, à quem não se ouve...

Despediu-se então saltitando, coaxando pelo caminho de volta.

Pedro parou um minuto para decidir. Fechou os olhos. Escutou um murmúrio (não sabia se vinha de dentro ou de fora). Parecia o rumor de uma queda-d´água. Decidiu pegar o caminho da direita, pois o sussurro parecia vir de lá. A princípio começou fraquinho, depois foi ficando mais forte. Seguiu então confiante, Pedro desviava das pedras em seu caminho. Não demorou muito mais para chegar. Quando vislumbrou a cachoeira, Pedro deslumbrou-se! A Lua iluminava os fios d´água que escorriam. À seus olhos, o salto era uma longa cabeleira prateada. Os reflexos de luz penteavam cabelos lisos que seguiam mata adentro. Oxum!

Finalmente, reconheceu a concha do Dr. Caramujo. Estava lá, do jeitinho que Narizinho havia dito, ao lado da casa do orixá. As luzes dentro da moradia estavam acesas. Feixes amarelos escapavam por duas pequeninas janelas.

- Ótimo, ele deve estar acordado!

Pedro sentiu-se então animado!

- Ufa! Até que enfim!

Conseguiria sua perna de volta, e poderia correr e jogar bola como qualquer menino 'normal'.

Rapidamente se aproximou da casinha. “Que coisa estranha, não tem porta, nem campainha.” Tentou olhar pela janela, mas a luz de dentro era tão forte que não se via nada. Lembrou do Visconde de Sabugosa explicar, quando lhe perguntou por que não se conseguia olhar diretamente para o Sol. “Pois é Pedro, nem sempre é a escuridão que cega. Tem coisas que o Sol não quer que vejamos.”

Deu pequenas batidas do lado de fora:

- Toc,toc, toc... Dr. Caramujo? É Pedro, neto da Dona Benta, do sítio do pica-pau-amarelo.

- Desculpe o horário. É que eu me perdi. Se puder me atender... Preciso muito lhe falar...

Estranhamente a casa começou a se mover. Para um lado e para outro. Como se estivesse... espreguiçando? Escaparam pelas janelas, braços retesados de punhos cerrados. Pernas esticadas levantaram a concha em direção ao céu. Com o olhar fixo para lua Dr. Caramujo soou:

- 'Uhãããã... Nhaca!'

- Pelo amor das minhas lesminhas! É noite e meia. O que fazes aqui curumim?

- Nossa! A sua casa anda?

- Não menino, eu quem ando com ela. O tempo que for, meu templo eu velo e levo comigo.

- Narizinho me mandou, disse que o Dr. Caramujo sabe tudo de tudo. E que dará um jeito de me curar.

- Em primeiro lugar, quem sabe tudo de tudo, não aprendeu é nada. Em segundo, pode me chamar Araújo. Não sou doutor em nada, nem quero ser se já "sou". Em terceiro, não vejo nada de errado contigo.

- É minha perna esquerda, eu perdi.

- Hum... Sei... Não posso achar para ti, mas talvez possa ajudá-lo a encontrar-se. Que tal?

- Não tem uma pílula como aquela que deu para tia Anastácia ficar feliz de novo?

- Curumim, não há pílula, nem xarope, elixir ou bálsamo. De fato, não há remédio em toda medicina, nem aqui nem na China, que cure essa sua falta.

- Mas posso te apoiar, já que tem precisão. Sei onde se desencontra esse seu gambito. A bruxa Cuca quem escondeu. Aprofundou lá nas profundezas do lago dos sonhos. Vá ali... Atrás da cachoeira. Olhe bem no fundo na lagoa da caverna. E só saia de lá, depois que enxergar...

Pedro balançou a cabeça concordando. Fez como Araújo disse. Seguiu caminho, segurando nas pedras. Ali, próximo a queda, o rio não era tão fundo. A água batia na cintura. Na entrada da gruta, sentiu o peso da água. Eram as mechas de Oxum açoitando suas costas. Realmente havia uma caverna atrás da pequena catarata. Assim como os cabelos da guia, um lago prateado emergia.

Pedro sentou a beira, com as pernas dentro da lagoa. Mirava os olhos e a atenção para as águas cristalinas. Conseguia ver o fundo, o próprio reflexo, mas não enxergava nada além. Onde estaria sua perna esquerda? Ficou ali parado por alguns minutos. Até que perdeu a paciência.

- Será que está lá no fundo mesmo? Só vejo areia e pedra. Será que devo mergulhar? Irei...

E foi o que fez. Mergulhou. Nadou, nadou, nadou. Foi nadando até o âmago do lago. Nadou, nadou e nada... Cadê o fundo? Não chegava. Não enxergava...

Pedrinho começou a perder o fôlego. Certamente teria se afogado, se não fosse um abraço escamoso a enlaçar seu peito e puxá-lo de volta à superfície.

- 'Cof!Cof!Cof!'

Pedrinho regurgitou muita água, pôs tudo para fora, esparramado ali na borda da piscina. Ao abrir os olhos e levantar a cabeça, assustou-se ao ver a figura que o tinha salvo.

- ‘Tá lelé’ da cuca menino? Entra aqui na minha caverna e vai se morrendo na banheira?

Pedrinho viu um jacaré barrigudo de cabelos loiros (carambolas, qual o feminino de jacaré?... 'Jacaroa?'... 'Jacaré-fêmeo?').

Então finalmente entendeu, a própria Cuca havia lhe salvado.

- Sei por que invadiu a minha casa e mergulhou-se menino. Mas saiba, nunca escondi nada de ti. Você é quem vem se escondendo em mim a muito tempo. É por isso que acabou vindo parar aqui.

- Agora não vai ficar parado aqui não, se não a Cuca te pegar. Vá... Vá logo sumindo da minha residência, antes que mude de idéia. Se ficar, talvez faça ensopado de ti.

Pedrinho recuperando o fôlego despediu-se da bruxa, agradecendo por ter-lhe salvo.

Ao sair da caverna, amanhecia um novo dia, um dia novo. Dr. Caramujo... Quer dizer, Araújo estava esperando do lado de fora com uma surpresa.

- Venha cá curumim... Encontrou o que procurava?

- Não exatamente Doutor. Percebi que estava na estrada certa, mas procurava errado... Fiquei tanto tempo sentindo falta do que não me pertence mais, que me esqueci de caminhar.

- Quase me afoguei no lago dos sonhos, mas a Cuca me salvou.

Seus olhos se encheram de lágrimas, ao lembrar tudo o que havia acontecido. Refletiu e percebeu que o que mais queria ele já possuía. Sentiu saudades do sítio do pica pau amarelo e dos seus amigos.

Araújo então lhe mostrou o presente:

- Pedrinho vou lhe contar, Manuel de Barros, primo do Jeca Tatu dizia assim:

- Passarinho que ‘avoa’ mais alto é aquele que ‘avoa’ fora da asa.

- Você saiu de casa manco e agora irá voltar voando curumim. Vai viver seu presente!

- E olha só, fiz algo para você!

Araújo segurava nas mãos, uma prótese novinha em folha. Ele mesmo havia esculpido da mais nobre árvore. Tinha engrenagens que faziam joelho e também uma almofada e cinto para encaixar no coto.

- Experimente menino, depois ajustamos.

Pedrinho testou a nova perna e aprovou.

- Com certeza são melhores que muletas, disse.

- Seriam muletas se você ainda precisa-se delas meu filho. Agora é só uma ferramenta para te ajudar a viver seu presente.

Realmente esse primo do Jeca Tatu também sabia das coisas. Dizia ele, que há certo comportamento de eternidade nos caramujos.

Pedro não via a hora de voltar para casa para contar a todos sua aventura. Estava com saudades dos ensinamentos da Vó Benta, de brincar com Narizinho, dos quitutes da Tia Anastácia. Tinha saudades até da tagarelice da Emília.

Quantas peripécias estavam guardadas em sua infância? Quantas aventuras escondidas em algum lugar no sítio?

 

Ah! A propósito, outro dia, conversei com o professor Visconde de Sabugosa. Ele me disse que o correto é dizer jacaré fêmea, “pois não existe cobra-macha”.

 

Maurício de Carvalho Gervazoni

Mais: https://www.sem-fronteiras.net/news/terapia-intensiva/

 

Grato, Juliana Rato e escola Angeluz pelo presente.

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