Onde limite é a virgula e não o ponto.


O Último Conto Que Canto

19/05/2014 08:05

 

O ÚLTIMO CONTO QUE CANTO

 

Quem acha que vive sem ilusão

Vive iludido com a realidade

Até o dia em que ela bate à porta…

 

Eu sei que acabamos de nos conhecer.

Mas infelizmente tenho que partir. É que fui atirado do tempo. E não posso ceder mais nem um momento.

Mesmo com tanta coisa para lhe dizer, só posso deixar um recado breve. De quando me perdi na luz de um semáforo...

 

Sucedeu na metrópole em que moro. São Paulo. E foi um lapso de lembrança que me parou no sinal.

Uma cantiga que me emocionou e me deixou. Momento aquele, em que tudo interrompeu e fiquei vermelho.

 

No dia anterior tive dificuldades para dormir. Nada anormal. Sou do tipo que arquiteta o sono.

Quando deito as pálpebras, meus olhos se abrem para o imaginário. Tenho prazer em criar mundos. E desde pequeno trabalho na construção de uma cidade…

 

Um vilarejo imenso que habita meus pensamentos.

Não... Melhor dizer que meus pensamentos o habitam...

Toda noite passo tinta nova no centro velho e ela renasce.

Sou o maestro desta minha capital.

Nas ruas componho amigos. Companheiros que são lembranças inacabadas da outra cidade. Onde sobrevivo, São Paulo.

Estes camaradas que crio em mim, são frutos do frenesi. Do vai e vem da cidade grande. Dos veículos que aceleram e freiam, circulantes nas artérias marginais.

Seja noite ou dia, é latido de cachorro, briga de vizinho e gente falando o tempo todo.

Oriento-me e sou desorientado em Sampa, principalmente pelos sons.

Ah! Os sons! São Paulo buzina sempre! E são vários os tons das músicas que reverberam na metrópole. Tantos e variados movimentos, que eu nunca lembro direito toda a letra da música. Acontece muita coisa no mesmo segundo.

A sinfonia de Sampa é atonal e complexa.

Por isto, digo que minhas lembranças são inacabadas.

São ilusões reais do que houve. Acordes do que ouvi.

Minha interpretação do cotidiano é falha. Necessito completar então a partitura da recordação com fantasia. Por vezes, a memória esta tão fragmentada que reescrevo toda uma canção.

 

E assim, vou povoando a minha cidade imaginada…

Com pensamentos pautados, ergo rios, pontes e “over-drives”. E escutando minha população de cantilenas, consigo relembrar toda uma vida em Sampa.

Os segundos dos minutos dos dias anteriores em anos passados. Todos aqueles instantes que me tocaram. E que vem à tona em mim...

Alguns de vez em quando, outros de vez em sempre...

E muitas vezes ressurgem novas versões destas canções. Com interpretações diferentes.

Isto acontece por ser a minha cidade dinâmica. As lembranças nos cidadãos que pari, mudam quando estão mudos. Isto mesmo. Justamente quando me esqueço deles...

Provável, estarem vivendo nas casas inconscientes que ergui.

E no silêncio, a música de uma memória se transmuda na minha capital sonhada. E quando surge nas vias. A relembrança sempre vem com novos elementos, se torna mais rica. Sem perder o significado, pois o cantor é o mesmo. O conto é o mesmo.

Meu canto na cidade...

E arraigado estou profundamente nas pessoas que nasci nesta edificação das memórias.

Estes habitantes geralmente oram para o céu a minha procura. Mas também falam, declamam ou gritam.

Gosto mesmo quando me sussurram... Geralmente músicas de amor...

Vou lhe dizer...

As músicas que mais aprecio. Quando cantam. Encantam-me... Bom, tem algumas das canções (poucas), em que a melodia não é nada agradável. Destes moradores, procuro esquecer. Mas eles insistem em gritar suas dores estes que me moram.

São esganiçados. Invariavelmente é um zum-zum-zum nos ouvidos... Não gosto nem de pensar. Muito menos escutá-los.

Seria ótimo que ficassem trancados em suas casas. Mas o fato é que não tenho controle algum sobre eles. Quebram-me o silêncio á todo momento. Quer queira... Quer não.

Então, sou obrigado a aturá-los...

Vou arquitetando memórias musicais em “Dó”, outras vezes em “Sol”. E são muitas as variáveis em semitons.

Consolido minha “Sampa” imaginada assim.

Internamente vou soando a metrópole. Enquanto estou suando na labuta diária... Ou aos finais de semana. Distraindo-me nos parques, bares e tantos outros lugares pulsantes.

Observando e convivendo, vou contando ocasiões.

E dependendo da relevância do acontecimento, mais uma memória urge. Nascendo mais uma música. Mais um habitante para meu lugarejo. Mais um amigo para tocar-me... Então a população aumenta.

Com todos participando da trilha sonora que compõe as relembranças de minha vida.

 

Ah! É uma pena a interrupção...

Como gostaria que crescesse este vilarejo... Então construiria mais em mim. Mais casas, parques e portos para acomodar a todos. E obras que nunca realizei e lugares que nunca estive seriam desbravados.

Desenvolver-se-ia esta minha cidade.

Desvendar-se-ia meu eu...

Ao escutar os sons dispersos na minha capital. Nas diversas e variadas canções de amor e dor. Tristes ou alegres. Que reflito sobre o ontem e projeto o dia seguinte.

E como um maestro mágico, gesticulo a batuta e tiro o futuro da cartola.

 

É fato... Não viveria sem a cidade onde vivo. Nesta cidade que vive em mim.

Mas é louca esta imaginação que me causa pleonasmo.

E tenho insônia. Durmo pouco. Acordo antes do amanhã e desperto sonhando.

E todos os dias antecipo-me a alvorada.

É esta minha cidade sempre cantando, contando comigo...

 

Em São Paulo, toda gente diz que eu sou avoado.

Que vivo no mundo da Lua.

Quando pequeno diziam:

"- Este garoto deve ter algum problema.”

Acabei acreditando que era diferente. Fui mesmo.

Mas na época achava que era menos do que os outros.

Depois, descobri que problemas, somos todos. Alguns mais, outros ainda mais.

Caso nítido daqueles que acham que não tem nenhum. Estes deviam preocupar-se com sua normalidade.

E muita gente não consegue conviver com os seus. Os meus são tranquilos em lhe dar. São somente de ordem prática.

Atrapalho-me com as pequenas coisas.

A minha barba sempre esta mal alinhavada. Assim como as roupas, que ao menos combinam.

Os sapatos é que não... Outro dia sai de casa com pares diferentes. O povo riu. Ri junto, pois é natural em mim a desatenção. É um problema esta qualidade que tenho.

Talvez por dormir pouco e acordar sonhando. Por carregar a minha cidade mesmo quando em vigília.

Outro é a frequência com que me atraso. Faço isto até quando me adianto. Eu tento, mas estou sempre fora do tempo. Pelo menos do tempo dos outros.

Não consigo pensar como relógio. Só como ampulheta...

E os momentos me esvaem nos grãos de areia. Viro a ampulheta e o lado contra a gravidade esta cheio com grãos de instantes.

De repente, quando menos espero a gravidade esvaeceu o tempo.

E a areia esta inerte e compacta no lado oposto da ampulheta. Experiências preciosas morreram ali. Sepultadas nos grãos... Gostaria de ter vivido cada uma delas...

Não tenho agenda, nem gosto para compromissos.

Cumprir prazos ou decidir. E o mais difícil para mim é fazer o que os outros esperam. Eles ficam sempre esperando. E eu nunca chego. Mas também eles... Nunca chegaram até mim... Engraçado isto. Porque gosto de dançar. E para dançar tem que saber acompanhar o tempo da música.

A pulsação do metrônomo não me incomoda. Acomoda.

Acho que é porque a música esta latejando no coração da minha cidade.

Eu sei aqui dentro, estou presente. Pois ela esta, onde quer que eu vá...

Quando saio para rua, nunca levo guarda-chuva.

Aí as duas cidades, a que vivo e na que sobrevivo se misturam e complementam.

 

São Paulo é a terra da garoa. São Paulo é magica quando garoa. E eu adoro uma chuveirada.

Imagino as gotas de chuva como passarinhos d´agua.

Na minha cidade, não há gaiola com teto á proteger o canto rasante de uma gota caindo. Assoviando no ar.

Por isto, nada de guarda-chuva.

Gosto que as gotas andorinhas nadem no ar... Que elas molhem a mim! Que cantem!

Amo São Paulo quando ela chove em minha cidade...

 

E por falar em água…

Que delícia é o vazio que me da à água na boca.

Tenho prazer em preenchê-la com o meu sabor.

Pintá-la com as cores do meu calor.

Ah! “H” dois Oh! Este elemento é um grande mistério neste mundo... Não é perfeito que algo incolor, inodoro e insípido mate a sede?

É cristalina a leveza e suavidade da água. Um copo é capaz de satisfazer o corpo e banhar o espírito.

Nada mais neste mundo satisfaz como ela. Preenche-nos como ela. Nem mesmo o amor, este geralmente transborda o copo...

 

Sabe... Muitas vezes é difícil para mim até andar em linha reta. Porque sempre me observo. Não presto atenção no caminho. Ele é que tem que prestar atenção em mim.

Acabo derrubando toda sorte de objetos. Não ligo se eles quebram. Só me preocupo com os cacos de vidro, porque sempre ando descalço.

 

Por tudo isto e mais ainda, acredito que tenha me perdido neste semáforo...

 

Por estar desatento e atrasado...

Por estar garoando e sentir sede...

Por não ter andado em linha reta...

Pisei em um caco de vidro.

 

A cidade grande não me pertence. A grande cidade eu quem cultivo. A metrópole me assusta. Não acomoda pessoas como eu. É bruta, fria e obtusa.

As árvores são enormes e retangulares. E abrigam ninhos de rouxinóis que estão mecanizados. Mimetizados nas grades de seus condomínios fechados.

Estas encarceradas aves repetem a mesma música. Indefinida. Triste. Pobres pássaros, não sabem que tem asas.

Precisam de elevadores para subir e descer do céu de suas casas. Necessitam de carros e coletivos para leva-los e trazê-los á lugar algum.

Se indagassem perceber-se-iam. E poderiam voar para seus destinos... Estão surdos para o próprio lamento...

As nuvens estão sujas de fumaça por seu trabalho sem propósito.

E choram cinzas.

Os rios acabam poluídos por tristeza.

E cheiram mal.

Pelo menos, estes ainda, mesmo que infelizes sobrevivem.

Cruciante é imaginar a dor dos meninos que conheci no semáforo...

 

Na minha cidade, plantei ovos de bem-te-vis na terra vermelha.

São pés de pássaros de verdade que cultivo.

Carne e osso advindos d´alma.

Minha colheita é um recital de bom dia.

Todos os dias.

Frutos das reflexões que faço enquanto meus amigos musicais circulam nas vias do meu mundo...

 

Ah! Estas cidades!

Em uma sobrevivo me perdendo.

Na outra vivo me encontrando.

 

E por falar em encontro e perdição. Cheguei ao ponto que queria. Depois de tantas vírgulas. Perto do ponto final. O motivo da nossa conversa.

Bem que gostaria de falar mais das duas cidades. De todas as maravilhas e agruras que se podem encontrar por lá.

Das músicas que não param de tocar...

Teria muito mais a dizer, mas tive que resumir. Fiz o melhor que pude.

Acredito ter dito o que realmente importa.

 

Agora, o espetáculo acabou. A música finda.

Terminado o recital em um farol vermelho.

O que muito me entristece. Porque perceba... Eu adoro representar meu papel em ambas às cidades.

Foi em Sampa.

No único dia que contei na vida. Seis de março do ano de dois mil e treze.

Exatamente o dia de agora. A ampulheta vira e começo a contar instantes.

O último indivíduo da minha cidade cantará. Uma canção triste, que sequer teve tempo de morar em mim.

Vou eu em duas rodas para o trabalho.

Não suporto trânsito. Quem suporta?

Prefiro me arriscar com uma moto e transitar do que ficar enclausurado em lata.

Além do mais, como sempre me atraso. E a motocicleta me ajuda a adiantar.

Uso o mesmo caminho que faço todos os dias da semana. Seguindo por uma avenida de grande movimento. Que naturalmente pelo horário esta congestionada.

É uma sinusite esta que não acaba nunca em São Paulo.

Esta garoando, melhor ir devagar.

Sigo no corredor entre os carros. Assim como outros motociclistas o fazem. Á frente na avenida o farol amarela.

O tempo está nublado. Cadê o Sol?

Automaticamente, diminuo a velocidade. Fecha o semáforo.

É um sinal. Eu paro.

Estou plainando pensamentos na luz vermelha.

Sem atenção alguma ao meu redor. Encarnado no meu destino sem saber... Estou presente na minha cidade. Ausente em São Paulo.

Na ampulheta a areia se esvai...

 

Foi às sete e trinta da manhã. Neste exato momento, a gravidade paralisa o instante em um grão.

Que começa a desabar em câmera lenta.

Uma moto vermelha atravessa a minha frente. De onde veio?

Acho que é uma “Falcon”. Acho que esta sem placa.

Dois garotos. Um deles, o da garupa, esta sem capacete. Enxergo uma face parda, pálida, horrorizada. Ele esta com medo de mim. Eu não. Não sei o que sinto.

A moto é vermelha. Sei que sinto muito.

O menino salta da garupa e vem direto ao meu encontro.

Acho que é uma arma! Sim, com certeza é...

Ele saca. Esbugalho o coração. Sinto bater forte, mas não escuto. Sinto muito. Só há chuva cantando em meu capacete.

O garoto aponta o vil metal entre os meus olhos. Mira na minha cara. Desvio a íris para os arcos. A cabeça esta estática. O sinal vermelho. O grão vai ruindo vagaroso. A chuva molhando a todos.

Minha boca seca pede água...

Ninguém na cidade liga para o que acontece.

A cidade não para.

Uma moça ao celular. Talvez ligando para alguém... Talvez para a polícia... Foi ao piscar que me percebi.

A minha cidade estava muda. Para uma capital musicada, o silêncio é mais que assustador. É prelúdio de algo terrível...

Dizem que a vida inteira passa por nós neste momento. Todas as lembranças. É mentira.

Meus amigos habitantes estão mudos. Eles sabem. Eu sei.

A vida inteira já passou. Só isto. E é insuportável escutar este som. Só a chuva canta.

E eu tenho sede.

Tem uma arma na mão deste um menino. Sinto muito. É vermelho o sinal...

 

O silencio é rompido. Ele grita algo:

- Perdeu! Perdeu! Perdeu!

Não entendo o resto... Não entendo o resto... O que me resta?

Acho que ele quer minha moto, mas não consigo sair de cima dela. Minha mão está algemada no guidão de São Paulo.

E eu estou preso no grilhão da minha cidade.

Parei no vermelho. Paralisei.

É gestação de um novo cidadão que estou vivendo. Um novo e tenebroso amigo.

Uma música que se consolidada irá me atormentar para sempre. Gritará sua canção em minha cidade e mudará a mim.

Ela esta a sua espera menino... Nasça por favor! Prefiro conviver com teus gritos e lamentos a largar minha batuta inerte no chão.

Se interromper a sinfonia agora, deixarei meu público órfão.

Olho para o farol. A luz cega. Não vejo nenhuma luz...

Ainda está vermelho. Rubro em desespero! Fecho as pálpebras. Estou lá... E procuro alguém, algo. Qualquer lembrança. Qualquer motivo que me de esperança... Nada!

 

No vermelho me apontaram a realidade da cidade grande...

Momento este, que me ceifou a ilusão da construção... Da minha grande cidade...

Não houve alerta de um sol amarelo. Clamando para me atentar... Me alentar...

Só ouvi o verde num estampido seco...

Obrigando-me a prosseguir...

 

O grão de areia era o último. E estatelou-se no chão, comigo.

A ampulheta rompeu-se.

Grãos de experiência derramaram violetas no asfalto.

Os passarinhos d´água cantam em minha boca.

Finalmente matei a sede.

O céu das cidades estão corados em olhos de sangue.

 

Não deu tempo... Menino; memória...

Tu és música que escutei só uma vez...

No farol que me atiraste da vida...

A cidade não se importa...

Farei falta para cidade morta...

 

Não penso em mais nada.

Como poderia eu?

Só de relance que ouvi meus filhos...

 
Maurício de Carvalho Gervazoni

 

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