Onde limite é a virgula e não o ponto.


Terapia Intensiva

03/04/2016 23:33

Terapia Intensiva

 

 

Levanto pálpebras entorpecidas, acordado por sinfonia estranha. 'Bips' de muitos tons, orquestra dos aparelhos de monitoramento. Realizo onde estou. Abro os olhos. Súbito como a dor no peito, veio à mim essa pressa lancinante em falar contigo. Em me abrir...
Boa tarde, querida carcaça. Este sono 'morfinico' bem ao meio dia dos meus dias, me sensibilizou. Pensei aqui, plugado a cama. Apreciando incomoda música. Nada melhor que uma terapia intensiva para gente discutir a nossa relação. Quem sabe sair daqui acordados. Quero antes de mais nada, lhe pedir desculpas. Toda vida usei e abusei de ti. Te fiz engolir a seco vícios e desejos. Fumei, bebi e comi tua saúde. Fui além da conta, só pelo prazer... Agora cobra uma dívida de anos. Nunca pensei que chegaríamos a esse ponto. Admito a culpa. Te submeti a noites sem dormir, por trabalho e diversão. Usei café e álcool, gordura, açúcar e farinha. Não te deixei descansar quando me pedia. E quantas foram as vezes que ansioso te estressei? E deprimido te deixei abandonada? Quantas vezes sem necessidade acelerei teu coração ao limite. Te coloquei em precipícios pela adrenalina. Te chicoteei com minhas mágoas e rancores. Me embebedei da bile alheia, te dei cólicas. Quantas foram nossas ressacas homéricas? Tatuei tua pele carcaça, com motivos torpes. Te expus a excessos de sol. Queimei com fogo. Te deixei a flor da pele. Me apaixonei e traí. Torturei teu estômago com a agulha do rancor e da raíva. E quase te afoguei por pura vaidade. Por último, quase perdi o ar.
Quarta-feira, recebi tua correspondência divina. A conta chegou carcaça e levei um baita susto quando o peito ardeu e diminuiu o meu ar...
Será hipocrisia dizer que me arrependo. Será mentir, dizer que nunca mais te farei sofrer. Que nesta UTI estou pagando pelos excessos para tornar-me outro. Não... não será assim. Eu quero viver! À mim, impossível imaginar outra forma que nao seja louca e intensamente, como sempre foi. Ainda não saltamos de paraquedas, ainda não conhecemos a torre Eiffel. Ainda não vi minha filha se apaixonar e não assisti a formatura dos meninos. Ainda não escrevi um texto de que me orgulhe. Ainda não aprendi, agradeci e amei o suficiente. Minha hora está longe carcaça. Quando a última barca vier, partirei com amor. No semblante, deixarei a fotografia de um sorriso. Para que todos se lembrem que sempre fui assim. Feliz. Estarei orgulhoso por ter repartido obra amorosa. Por isso, faço pacto contigo. Porque ainda tenho muito amor à doar. Tenho pai, irmãs, filhos, uma familia maravilhosa, com primos, tios e tias que preciso amar e que esperam meu retorno. Tenho amigos sinceros. Tenho profissões de que me orgulho. Tenho uma linda companheira que ora por mim. Que nesse momento caro, me ajuda colocando alimento na tua boca, nos meus pensamentos. Me leva ao banho, me lava a alma, te enxuga os pés. Ela está nos levantando da cama carcaça. Ela está nos ajudando a caminhar novamente. Cuidando da gente, pedindo para gente se cuidar. Tenho muitos instantes dentro dos minutos que ainda não senti. São horas em anos que ainda não vivi. Preciso de ti. Preciso que suporte o peso da leveza da alma poeta. Preciso que me leve, leve até lá... Até um fim. Que sei que está distante. O dia em que merecer fenecer por amor.
É isso carcaça. Eu sinto muito... nao sei pouco sentir.
Aqui no leito de urgência em que me colocou. A base de drogas para suportar a dor e aparelhos para respirar. Fez me refletir. Sei que não mereço, mas preciso lhe pedir esse favor. Me coloque em pé novamente. Vamos sair daqui juntos. E prometo, te respeitarei como nunca o fiz. Me ensinou carcaça que embora seja forte, você tem limites. É ferramenta divina, mas matéria. Meus sonhos podem atravessar a imaginação, mas dependo de ti para tudo. Até para sonhar. É meu bem mais precioso e devo dar o máximo valor. Prometo, não acontecerá novamente. Sem você nessa vida, eu não sou nada.

 

Maurício de Carvalho Gervazoni

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